terça-feira, 27 de março de 2007

Por dentro da Apple - Parte 3

CRIATURA E CRIADOR
As conexões entre a criatura e o criador são evidentes. O perfeccionismo neurótico de Jobs tornou-se uma norma de conduta corporativa, assim como seu gosto apurado pelo design. Reza a lenda que Jobs teria demitido um designer da equipe do iMac porque ele fez um protótipo no qual havia um único parafuso visível. Jobs ordenara que não houvesse parafuso à vista. Em relação às lojas da Apple – uma idéia polêmica lançada em 2001 que teve enorme impacto positivo nas vendas e no lucro da empresa –, seus cuidados foram sem precedentes. Ordenou que um protótipo da loja fosse erguido, peça por peça, sob total sigilo, em um barracão no campus da Apple. Ele queria testar pessoalmente todos os detalhes do ambiente de vendas. Quando em dúvida sobre a excelência do finíssimo mármore que importara da Itália para a loja inaugural em Manhattan, determinou que uma peça enorme fosse enviada a Cupertino, para que ele julgasse pessoalmente a qualidade da sua nervura.

A necessidade obsessiva de controle de Jobs está por trás da intensa verticalização da Apple, uma das poucas empresas do Vale do Silício que recusa a especialização e tenta fazer quase tudo sozinha – hardware, software e serviços, como o iTunes. Em janeiro, durante a palestra do MacWorld, Jobs repetiu uma de suas citações favoritas: “Quem é sério a respeito de software faz o seu próprio hardware”. Mesmo a voracidade da companhia pode ser debitada ao temperamento furiosamente possessivo de Jobs. Ele sempre se recusou a licenciar o Macintosh para outros fabricantes, insistindo em abraçar todo o mercado gerado por suas marcas. Ao agir assim, fez com que a Apple passasse de maior empresa de computadores pessoais no início dos anos 80 para uma posição quase irrelevante no fim do milênio. O mercado foi dominado pelo padrão aberto da IBM. Agora, graças à aura de sucesso do iPod, a família Mac espera conquistar 6% do mercado americano em 2007, com vendas de 9 milhões de computadores. É muito, mas, ao mesmo tempo, muito pouco, quando se pensa nos quase 300 milhões de PCs Windows vendidos anualmente. Um estudo mencionado por Keeley, da Dooblin, mostra que a Apple fica com 85% do valor total gerado por seus produtos, enquanto a Microsoft, do arqui-rival Bill Gates, se apropria de apenas 15%. Essa diferença de modelo de negócio – um colaborativo, outro totalmente cerrado – ajuda a entender porque a Microsoft fatura três vezes mais que a Apple e é mais influente do que ela no mercado de tecnologia, embora chegue sistematicamente atrasada na corrida da inovação. “A convicção arrogante e inabalável de Jobs de que ele sabe mais do que qualquer um influenciou a cultura da empresa”, escreve Jim Carlton em um livro recém-lançado nos EUA intitulado “Apple, uma História de Intriga, Egomania e Desatinos Corporativos”.

A semelhança entre a Apple e seu fundador repete-se no processo de inovação. Ele é centralizado em torno de Jobs e de uma pequena equipe de auxiliares. Nela pontifica o discreto e musculoso Jonathan Ive, um londrino de 39 anos que já foi apelidado de Beckham do design. Embora seja um dos profissionais mais influentes do mundo em sua área, ele quase não aparece. Seu temperamento retraído combina perfeitamente com a exuberância de Jobs, que ocupa a cena em nome da empresa. Os 12 designers que trabalham com Ive, ingleses em sua maioria, ganham o dobro da média de mercado, mas pagam o preço do anonimato. São proibidos de dar entrevistas, assim como os outros profissionais que Jobs teme perder para a concorrência. Eis outro caso de contaminação psicológica entre o empreendedor e sua empresa: todo o trabalho de criação e mesmo a produção ordinária de equipamentos é cercada de segredo na Apple. Filho adotivo, introvertido, Jobs parece ter dificuldade em estabelecer relações de confiança. Trata-se de um homem que demorou quase dez anos para reconhecer como sua a filha de uma namorada de longa data. É voz corrente que a Apple, assim como seu principal executivo, reage de forma “selvagem” contra qualquer parceiro, fornecedor ou empregado que julgue ter violado sua confiança. Alvy Ray Smith, um alto executivo da Pixar que teve o desplante de discordar em voz alta do chefe – e rabiscar na lousa em que Jobs gosta de escrever durante as reuniões –, não apenas foi afastado da empresa sob uma enxurrada de insultos como teve seu nome eliminado do site da companhia, num arroubo de stalinismo corporativo. Desde então, é como se Smith nunca tivesse existido, embora tenha sido um dos fundadores e principais animadores da Pixar, empresa que Jobs comprou de George Lucas em 1986 e vendeu para a Disney no ano passado por US$ 7,4 bilhões em ações do conglomerado, o que o tornou seu maior acionista.

Jonathan Ive, 39 anos, o Beckham do design: principal responsável pela cornucópia criativa da Apple, o inglês musculoso e retraído gosta de trabalhar na fábrica, onde as inovações concebidas no estúdio ganham vida real e sofrem o duro teste de resistência dos materiais

Jobs costuma apregoar que “o sistema de inovação da Apple é que não há sistema”, e que inovação vem simplesmente das pessoas se cruzarem nos corredores ou telefonarem umas para as outras às 10 da noite, para discutir uma idéia nova. Não é bem assim. Com um olhar atento, é possível identificar práticas de sucesso da Apple que podem ser emuladas por outras empresas. A principal delas é a formação de equipes. Apesar do mau gênio de Jobs, a Apple tem sido capaz de atrair e inspirar um numeroso grupo de talentos, a exemplo de Jonathan Ive. Nisso há um forte traço de semelhança entre a Apple e os estúdios Disney. O criador do Mickey e do Pato Donald – Walt Disney, morto em 1966 – era um perfeccionista temperamental que conseguiu cristalizar uma cultura de excelência revolucionária para os padrões do cinema americano de sua época. Entre outras aparentes excentricidades, levava animais ao estúdio para que os desenhistas estudassem exaustivamente seus movimentos. Assim nasceram Mickey e Donald. Suas animações eram refeitas tantas vezes quanto fosse necessário para que ficassem impecáveis. O preço do minuto de filme Disney, claro, era quatro ou cinco vezes maior que o preço dos concorrentes. Na Apple não é muito diferente. As pessoas que ali trabalham são cativadas, em primeiro lugar, pela reputação da empresa de cultivar a excelência. Diferentemente do que ocorre em incontáveis empresas, ninguém é promovido por reduzir custos, mas, sim, por projetar e desenvolver idéias inovadoras, ainda que dispendiosas. A caixa de plástico transparente do primeiro iMac, cujo desenho jetsoniano tirou a empresa do buraco em 1998, custava US$ 65, enquanto a média de custo no restante da indústria era de US$ 20. À época desse projeto, a Apple oferecia aos seus designers o luxo insuperável de ter a seu serviço um supercomputador Cray X para simulações.

“Nós contratamos pessoas que desejam fazer as melhores coisas do mundo”, costuma vangloriar-se Jobs. Não são, porém, apenas o talento e o entusiasmo de seus engenheiros e designers que explicam a liderança da Apple no campo da inovação. Há um método na criação, que já foi descrito como “colaboração profunda” e “engenharia concomitante”. Esses termos tentam descrever o trabalho simultâneo e interdisciplinar em que vários grupos (hardware, software, design e marketing) se reúnem o tempo todo para medir avanços e trocar sugestões. Esse processo é chamado de co-polinização e foi empregado no desenvolvimento do iPhone. Na palestra de lançamento do novo produto, Jobs pediu aplausos para a equipe que havia criado o aparelho. Várias dezenas de jovens puseram-se de pé para ser ovacionados. Que uma equipe tão numerosa tenha mantido o mais cerrado segredo a respeito do projeto em 30 meses de trabalho é uma bela mostra de lealdade, envolvimento e espírito de equipe – além, provavelmente, do temor que Jobs infunde. O que ali se faz é diferente do que ocorre na maioria das empresas, onde a criação se dá em estágios seqüenciais, isolados entre si: uma equipe conclui sua parte e passa o trabalho para outra, que avança. Segundo afirma Ive, a maneira tradicional de desenvolver produtos simplesmente não funciona quando se é tão ambicioso como o pessoal da Apple. Montes e montes e montes de protótipos são feitos até que as idéias ganhem forma definitiva. Há também detalhes chatos – mas não menos importantes –, como desenhar exaustivamente parafusos que não aparecem. Depois, resta o velho problema dos materiais. Para fazer o primeiro iMac, os projetistas da Apple fizeram estágio em uma fábrica de gelatina, tentando entender questões de cor e transparência. Quando se trata de desenhar em metal, o time é capaz de se deslocar ao norte do Japão para aprender com os especialistas mundiais dessa especialidade. A ousadia do design da Apple é informada pelo robusto conhecimento industrial dos seus desenhistas, não apenas pelo desejo de assombrar. “A gente passa muito tempo nas fábricas”, explicou Ive, tempos atrás. Claro, esse grau de dedicação funciona somente em uma cultura corporativa na qual a perfeição absoluta é considerada um objetivo razoável. E na qual os profissionais podem atirar-se de corpo e alma a poucos projetos de cada vez. O toque final do processo Apple é arrancar o couro dos fornecedores, para que o custo da inovação não seja repassado aos consumidores, inviabilizando a venda das novidades. A empresa é conhecida como a negociadora mais feroz do mercado de tecnologia.

Nenhum comentário: