terça-feira, 27 de março de 2007

Por dentro da Apple - Parte 1

Steve Jobs, o sujeito aí ao lado com os pés na mesa, comanda uma empresa que em três décadas se transformou em uma lenda. Da linha de montagem da Apple emergiram alguns dos objetos mais admirados da história da tecnologia. A empresa é uma usina de idéias, com invenções que surpreendem a concorrência e arrebatam os consumidores. Funcionam como um farol para a indústria. Apontada como a empresa mais inovadora do mundo, ela é sinônimo de aparelhos revolucionários como o iPod e, recentemente, o iPhone. Qual é, afinal, o segredo da Apple?

Jobs dez anos atrás, na sala
da diretoria da Apple, pouco
depois de retomar o comando
da empresa: o “monstro
visionário” voltou a concentrar
esforços em um número
reduzido de projetos com
grande impacto tecnológico.
Essa fórmula de sucesso
prevalece até hoje

Poucas empresas no mundo conquistaram o direito de chamar a si mesmas de revolucionárias. A Ford é uma delas. Seu fundador, Henry Ford, iniciou em 1908 a produção em série de automóveis. A IBM, que criou os computadores modernos, é outra. Os mainframes mudaram a maneira como empresas e governo trabalham e abriram novos horizontes para a ciência. Os estúdios Disney, com seus desenhos animados, redefiniram a indústria de entretenimento. Mas exemplos como esses são restritos, raros mesmo. A inovação radical, aquela capaz de criar um produto novo e um novo mercado, ocorre apenas de tempos em tempos na história do capitalismo. Mesmo agora, numa era de inovação programada e verbas bilionárias de pesquisa e desenvolvimento, poucas empresas se destacam no mar revolto das novidades. Diante disso, chama a atenção o desempenho de uma companhia instalada em Cupertino, na Califórnia, à margem da Baía de São Francisco. A Apple Inc., que completará 31 anos em abril, já deixou marcas no universo desproporcionais à sua idade e ao seu tamanho como empresa. Ela ocupa apenas a 159a posição na lista das maiores companhias americanas – mas seu currículo como inovadora é impressionante.

Seu mais recente trunfo foi apresentado ao mundo na segunda semana de janeiro, em São Francisco, Califórnia, batizado de iPhone – um charmoso aparelho de bolso com apenas 135 gramas, que contém as tecnologias mais populares do século 21. Com ele na mão, Steve Jobs, o carismático presidente da Apple, conduziu um show de tecnologia como apenas ele é capaz de produzir. Mesmo pressionado pela Justiça americana, que o investiga por irregularidades em operações com ações, Jobs apresentou-se no palco com a desenvoltura e o brilho dos grandes artistas. Alto e magro, envergando a mística de quem sobreviveu a um câncer letal em 2005, ele mais uma vez não desapontou os fanáticos pela Apple que, desde a noite anterior (5ºC em São Francisco), fizeram fila de um quarteirão na porta do Centro de Convenções Moscone para vê-lo. Já chegou avisando a platéia que ali iria se fazer história. Em seguida, fez dobrar de rir a audiência de 4 mil pessoas ao ironizar a rival Microsoft. Depois, arrancou “aaahs” e “ooohs” de espanto ao demonstrar as funções do eclético iPhone. Ao final de uma apresentação de quase duas horas, em que empregou oito vezes o adjetivo “assombroso” e sete vezes “revolucionário”, Jobs, uma espécie de John Lennon dos empresários, fez com que todos se sentissem presentes ao nascimento de uma estrela. “Hoje, a Apple reinventou o telefone”, proclamou.

Jobs no encerramento da palestra
de lançamento do iPhone em São
Francisco, Califórnia, na segunda
semana de janeiro: a foto
projetada no fundo do palco
mostra ele e Wozniac, o outro
Steve, na época da fundação da
Apple, em 1976

IPHONE, UMA RUPTURA

Poderia ser apenas o arroubo de um dos maiores marqueteiros do universo, mas não. O iPhone constitui, de fato, uma ruptura com o passado, na melhor tradição do que a Apple já fez com o Macintosh, em 1984, e com o iPod, em 2001. O aparelho é ao mesmo tempo telefone, tocador de música, navegador de internet e organizador digital. Seu principal atributo, porém, não é o que faz, mas, sim, como faz. É um computador de mão que opera de forma totalmente amigável, como nenhum outro havia conseguido. Com ele, a Apple subverteu o padrão de “telefones inteligentes”, como o BlackBerry e o Treo (um mercado de 6 milhões de unidades vendidas no ano passado, nos EUA), oferecendo um novo paradigma estético e funcional. O iPhone permite bater fotos e enviá-las por e-mail com três ou quatro toques de tela, sem interromper o fluxo de música. Possibilita consultar a internet, trocar e-mails e montar teleconferências com espantosa facilidade. Transita de uma função para outra com naturalidade e elegância. Seu maior avanço é uma nova tecnologia de toque de tela chamada de “multitoque”, que permite mover imagens quase como se elas fossem apanhadas com os dedos. É uma coisa meio mágica, cujo desenvolvimento revela um pouco do processo inovador da Apple. A empresa começou a registrar patentes de telas multitoque em 2004 e, hoje, acumula 73 delas. Não satisfeita, em 2005 comprou em segredo a pequena Fingertouch, pioneira nesse campo, e somou os novos técnicos e seu know-how ao projeto do iPhone. Os blogs especializados juram que Jobs também tentou atrair para a equipe do iPhone um gênio chamado Jeff Han, dono da Perceptive Pixel. No ano passado, Han espantou o mundo da tecnologia com a primeira demonstração pública das possibilidades técnicas das telas multitoques. Quem conhece esse assunto diz que o iPhone é apenas a primeira de uma lista de inovações (da Apple e de outras empresas) baseadas nessas telas hipersensíveis. Supõe-se que elas vão mudar o mundo da tecnologia. Bonito, fácil de usar e inovador, o iPhone encantou o mundo instantaneamente, elevando em 8% as ações da Apple. É um sinal de forte aceitação do produto, que chegará ao varejo americano em junho próximo, com preço mínimo de US$ 499. A Apple prevê vender 10 milhões de unidades até 2008 e repetir com o iPhone a estratégia de oceano azul do iPod: criar um mercado com uma nova categoria de produtos, reduzindo à irrelevância novidades da concorrência. “Nós inovamos como loucos”, disse Jobs. “Fizemos uma revolução de primeira grandeza.”

Não é a primeira vez que a Apple reinventa o mundo da tecnologia. Em 1977, recém-saída da garagem, a empresa lançou o Apple II, primeiro computador pessoal do mundo. Dele descendem, em linha direta, todos os microcomputadores em operação no planeta, cuja população deve chegar a 1 bilhão em 2007. Poucos anos depois, com base numa idéia que dormitava nas gavetas da Xerox, redefiniu o jogo novamente, ao apresentar o Macintosh. Sua forma de operação intuitiva, conhecida como interface gráfica, abriu em 1984 o mundo dos computadores para quem nunca esteve familiarizado com programação. O Windows, da Microsoft, que anima 94% dos PCs usados no mundo, é um bisneto bastardo dessa revolução. Em outubro de 2001, ainda sob a ressaca dos atentados de 11 de setembro, a Apple convocou um grupo de jornalistas para revelar a face do futuro. Ela surgiu na forma de um objeto branco e retangular, do tamanho aproximado de um maço de cigarros mas com metade da sua espessura, que permitia carregar no bolso mil músicas em formato digital. Era o iPod, que já foi definido como o primeiro objeto do século 21: pela exuberante modernidade do seu desenho, pela distância técnica em relação aos demais tocadores de música e por suas tremendas implicações para a indústria da música e do entretenimento. Com ele, a Apple criou não apenas um sucesso comercial – que já vendeu quase 90 milhões de unidades e responde por 48% dos lucros da empresa – mas lançou a pedra fundamental de um inovador modelo de comercialização de conteúdos. Pelo computador, as pessoas compram músicas e seriados de televisão na loja digital da Apple, a iTunes Store, e os levam consigo. No início deste ano, a empresa atingiu a marca de 50 milhões de seriados e 1,5 milhão de filmes baixados da internet, além de 1,5 bilhão de canções.

Por dentro da Apple - Part e 2

A MAIS INOVADORA
Nos últimos anos, motivada em grande medida pelo sucesso do iPod, a percepção de que a Apple é uma companhia extraordinária tornou-se universal. No mais recente levantamento da consultoria Boston Consulting, que ouviu mais de mil empresas em todos os continentes, a Apple foi apontada pela segunda vez consecutiva como a empresa mais inovadora do mundo. Atrás dela estão gigantes como Microsoft, IBM, Sony, Nokia e Samsung, que gastam rios de dinheiro em pesquisa e desenvolvimento. Um levantamento da Booz Allen & Hamilton mostrou que enquanto a Apple aplica 6% do seu faturamento em pesquisa, a média mundial do setor de tecnologia é superior a 7%. Seu investimento de US$ 534 milhões nessa rubrica em 2005 foi apenas uma fração do que as grandes multinacionais de tecnologia costumam gastar. Ainda assim, foi a Apple, não a Microsoft ou a Sony, quem criou o iTunes, o iPod, o iPhone. Suas ações na bolsa americana, em resposta a esses inúmeros sucessos, saltaram de US$ 7 no início de 2003 para US$ 86 no final do ano passado – e US$ 94, após o lançamento do iPhone. Essa trajetória suscita uma questão: como a Apple se tornou a empresa mais inovadora do mundo?

Uma primeira resposta a essas indagações está contida no próprio estudo da Booz Allen: ao aplicar seus recursos em uma lista pequena de projetos com grande potencial, a Apple faz muito mais, com muito menos. “É o processo, não o tamanho do bolso”, reporta a consultoria. Quando se tem em mente que a empresa passou dois anos e meio debruçada sobre o iPhone, emergindo do projeto com um produto revolucionário e 200 novas patentes, é possível ter uma noção exata do que a concentração de esforços significa. Ocorre que o chamado “processo” da Apple não tem paralelo com o de outras empresas, a começar pela template_objetosonipresença de seu fundador e principal executivo. Aos 52 anos, o ex-hippie californiano Steve Paul Jobs é hoje um dos empresários mais influentes e admirados dos Estados Unidos. Suas aparições públicas, invariavelmente trajando jeans e camiseta preta do estilista japonês Issey Miyake, suscitam reações mais próprias a ídolos pop. Há sites na internet dedicados a cultuá-lo. Pelo menos meia dúzia de livros detalham sua biografia e devassam sua complexa personalidade. Os altos e baixos da carreira empresarial de Jobs – empreendedor milionário e namorado de estrelas de cinema aos 22 anos, chutado de sua própria empresa aos 30, quase falido com um novo negócio aos 40 e guru bilionário aos 50 – o tornam uma espécie de símbolo do tonificante capitalismo americano.

Pela força da sua personalidade, pelo vigor de sua inteligência e o peso de sua biografia na indústria de tecnologia, Jobs exerce na Apple uma influência avassaladora. Tanto é assim que, segundo analistas financeiros, sem ele o valor da companhia poderia despencar até 25%. “Como em tudo o mais, seu papel no processo de inovação é fundamental”, disse a Época NEGÓCIOS Larry Keeley, sócio da consultoria Dooblin e professor da disciplina de Inovação na Escola de Design da Universidade de Chicago. No passado, Jobs dirigiu pessoalmente a criação do Apple II e do Macintosh. Agora, gabando-se de que aprendeu a delegar, deve ser o único CEO do mundo que dedica metade do seu tempo a “coisas novas”. Resultado: desde 1997, quando retornou à Apple depois de 12 anos de exílio, imprimiu sua marca em cada um dos aparelhos que saíram da linha de montagem da empresa. Ao fazê-lo, provou que existe segundo ato na vida corporativa americana, ao contrário da maldição do escritor Scott Fitzgerald. Alguns dos produtos posteriores à reencarnação de Jobs tornaram-se clássicos: o coloridíssimo iMac, de 1998, primeiro computador pessoal em duas peças (apenas teclado e monitor), veio à luz a despeito da oposição dos especialistas. “Quando nós levamos o desenho aos engenheiros, eles vieram com 38 razões pelas quais aquilo era impraticável”, conta Jobs. “Eu respondi: não, não, nós vamos fazer assim mesmo. Por quê? Porque eu sou o CEO da empresa e digo que vai ser assim.” Dito e feito: a venda quase instantânea de 600 mil unidades recolocou a Apple na disputa pelo mercado de computadores pessoais.

OS PEDAÇOS DA MAÇA
Onde a Apple obtém suas receitas
(antes do Iphone)

Na hora de modernizar o iMac, em 2003, os designers ofereceram uma maquiagem que Jobs considerou medíocre. Mandou parar tudo, foi embora indignado e, horas depois, convocou à sua casa o desenhista-chefe da empresa, o inglês Jonathan Ive. Ao passear com ele pelas colinas ensolaradas da Califórnia, sugeriu uma meta: “Acho que o novo computador deveria parecer com um girassol”. Quando chegou ao mercado, o iMac tinha uma tela plana, a primeira do gênero, que se equilibrava graciosamente sobre uma haste metálica flexível, como um girassol. Foi outra revolução, ainda que as vendas tenham desapontado.

No caso do iPod, as impressões digitais de Jobs estão por toda a superfície do aparelho. O nome, por exemplo, saiu pronto da cabeça dele. Ou o fato de não haver botão de liga e desliga. Isso foi uma ordem pessoal e desconcertante dada aos projetistas logo no início do projeto. O volume de som, mais alto que o dos demais tocadores de MP3, foi feito para compensar a má audição do CEO da Apple. Também o fato de que o iPod não transfere músicas para o computador – apenas as recebe dele – resulta de uma decisão pessoal de Jobs para tentar evitar a pirataria.

“Ele dá direção geral ao trabalho dos projetistas e, depois, certifica-se pessoalmente de que as coisas estão avançando como deveriam”, afirma Keeley, o especialista em inovação. O olho crítico de Jobs é famoso, assim como seu implacável padrão de exigência e sua intolerância com erros alheios. “Isso está um lixo” é uma frase que se escuta com freqüência na Apple. “Palhaço” é o epíteto que reserva para quem passa abaixo da sua linha de corte. Parece brutal, é brutal, mas não impede que as pessoas venerem Jobs e atribuam a ele parte substancial de seu próprio sucesso profissional. “Com Steve me empurrando, eu consegui coisas que não teria conseguido sozinho”, afirma o engenheiro Jon Rubinstein, ex-vice-presidente de hardware da Apple e um dos líderes do projeto iPod. Ao contrário da teoria moderna sobre criatividade, que advoga uma atmosfera de liberdade sem medo, na Apple o pavor do chefe e a admiração religiosa por ele são fatores de estímulo importantes. “Ele gira as pessoas como um pião e faz com que elas vejam o mundo do jeito dele”, afirma Guy Kawasaki, que está com a Apple desde o projeto Macintosh, nos anos 80. Hoje atua como pregador da tecnologia da empresa. “Jobs pode ser muito hostil ou muito amigável, e ninguém quer ficar do lado errado dessa equação.” Embora importante, esse papel de “monstro visionário” – definição de John Sculley, o executivo que o expulsou da Apple em 1985 – não é o único de Jobs. (Procurado por Época NEGÓCIOS, Sculley recusou-se a falar de Jobs.) Além de moldar os produtos e hipnotizar seus funcionários, ele gravou sua personalidade no DNA da empresa. Emana dele o núcleo dos valores e da cultura da marca, uma das mais fortes do mundo. “Não conheço nenhuma outra companhia que se pareça tanto com seu fundador”, afirma o escritor Steve Levy, repórter de tecnologia da revista Newsweek e interlocutor freqüente do CEO da Apple.


Por dentro da Apple - Parte 3

CRIATURA E CRIADOR
As conexões entre a criatura e o criador são evidentes. O perfeccionismo neurótico de Jobs tornou-se uma norma de conduta corporativa, assim como seu gosto apurado pelo design. Reza a lenda que Jobs teria demitido um designer da equipe do iMac porque ele fez um protótipo no qual havia um único parafuso visível. Jobs ordenara que não houvesse parafuso à vista. Em relação às lojas da Apple – uma idéia polêmica lançada em 2001 que teve enorme impacto positivo nas vendas e no lucro da empresa –, seus cuidados foram sem precedentes. Ordenou que um protótipo da loja fosse erguido, peça por peça, sob total sigilo, em um barracão no campus da Apple. Ele queria testar pessoalmente todos os detalhes do ambiente de vendas. Quando em dúvida sobre a excelência do finíssimo mármore que importara da Itália para a loja inaugural em Manhattan, determinou que uma peça enorme fosse enviada a Cupertino, para que ele julgasse pessoalmente a qualidade da sua nervura.

A necessidade obsessiva de controle de Jobs está por trás da intensa verticalização da Apple, uma das poucas empresas do Vale do Silício que recusa a especialização e tenta fazer quase tudo sozinha – hardware, software e serviços, como o iTunes. Em janeiro, durante a palestra do MacWorld, Jobs repetiu uma de suas citações favoritas: “Quem é sério a respeito de software faz o seu próprio hardware”. Mesmo a voracidade da companhia pode ser debitada ao temperamento furiosamente possessivo de Jobs. Ele sempre se recusou a licenciar o Macintosh para outros fabricantes, insistindo em abraçar todo o mercado gerado por suas marcas. Ao agir assim, fez com que a Apple passasse de maior empresa de computadores pessoais no início dos anos 80 para uma posição quase irrelevante no fim do milênio. O mercado foi dominado pelo padrão aberto da IBM. Agora, graças à aura de sucesso do iPod, a família Mac espera conquistar 6% do mercado americano em 2007, com vendas de 9 milhões de computadores. É muito, mas, ao mesmo tempo, muito pouco, quando se pensa nos quase 300 milhões de PCs Windows vendidos anualmente. Um estudo mencionado por Keeley, da Dooblin, mostra que a Apple fica com 85% do valor total gerado por seus produtos, enquanto a Microsoft, do arqui-rival Bill Gates, se apropria de apenas 15%. Essa diferença de modelo de negócio – um colaborativo, outro totalmente cerrado – ajuda a entender porque a Microsoft fatura três vezes mais que a Apple e é mais influente do que ela no mercado de tecnologia, embora chegue sistematicamente atrasada na corrida da inovação. “A convicção arrogante e inabalável de Jobs de que ele sabe mais do que qualquer um influenciou a cultura da empresa”, escreve Jim Carlton em um livro recém-lançado nos EUA intitulado “Apple, uma História de Intriga, Egomania e Desatinos Corporativos”.

A semelhança entre a Apple e seu fundador repete-se no processo de inovação. Ele é centralizado em torno de Jobs e de uma pequena equipe de auxiliares. Nela pontifica o discreto e musculoso Jonathan Ive, um londrino de 39 anos que já foi apelidado de Beckham do design. Embora seja um dos profissionais mais influentes do mundo em sua área, ele quase não aparece. Seu temperamento retraído combina perfeitamente com a exuberância de Jobs, que ocupa a cena em nome da empresa. Os 12 designers que trabalham com Ive, ingleses em sua maioria, ganham o dobro da média de mercado, mas pagam o preço do anonimato. São proibidos de dar entrevistas, assim como os outros profissionais que Jobs teme perder para a concorrência. Eis outro caso de contaminação psicológica entre o empreendedor e sua empresa: todo o trabalho de criação e mesmo a produção ordinária de equipamentos é cercada de segredo na Apple. Filho adotivo, introvertido, Jobs parece ter dificuldade em estabelecer relações de confiança. Trata-se de um homem que demorou quase dez anos para reconhecer como sua a filha de uma namorada de longa data. É voz corrente que a Apple, assim como seu principal executivo, reage de forma “selvagem” contra qualquer parceiro, fornecedor ou empregado que julgue ter violado sua confiança. Alvy Ray Smith, um alto executivo da Pixar que teve o desplante de discordar em voz alta do chefe – e rabiscar na lousa em que Jobs gosta de escrever durante as reuniões –, não apenas foi afastado da empresa sob uma enxurrada de insultos como teve seu nome eliminado do site da companhia, num arroubo de stalinismo corporativo. Desde então, é como se Smith nunca tivesse existido, embora tenha sido um dos fundadores e principais animadores da Pixar, empresa que Jobs comprou de George Lucas em 1986 e vendeu para a Disney no ano passado por US$ 7,4 bilhões em ações do conglomerado, o que o tornou seu maior acionista.

Jonathan Ive, 39 anos, o Beckham do design: principal responsável pela cornucópia criativa da Apple, o inglês musculoso e retraído gosta de trabalhar na fábrica, onde as inovações concebidas no estúdio ganham vida real e sofrem o duro teste de resistência dos materiais

Jobs costuma apregoar que “o sistema de inovação da Apple é que não há sistema”, e que inovação vem simplesmente das pessoas se cruzarem nos corredores ou telefonarem umas para as outras às 10 da noite, para discutir uma idéia nova. Não é bem assim. Com um olhar atento, é possível identificar práticas de sucesso da Apple que podem ser emuladas por outras empresas. A principal delas é a formação de equipes. Apesar do mau gênio de Jobs, a Apple tem sido capaz de atrair e inspirar um numeroso grupo de talentos, a exemplo de Jonathan Ive. Nisso há um forte traço de semelhança entre a Apple e os estúdios Disney. O criador do Mickey e do Pato Donald – Walt Disney, morto em 1966 – era um perfeccionista temperamental que conseguiu cristalizar uma cultura de excelência revolucionária para os padrões do cinema americano de sua época. Entre outras aparentes excentricidades, levava animais ao estúdio para que os desenhistas estudassem exaustivamente seus movimentos. Assim nasceram Mickey e Donald. Suas animações eram refeitas tantas vezes quanto fosse necessário para que ficassem impecáveis. O preço do minuto de filme Disney, claro, era quatro ou cinco vezes maior que o preço dos concorrentes. Na Apple não é muito diferente. As pessoas que ali trabalham são cativadas, em primeiro lugar, pela reputação da empresa de cultivar a excelência. Diferentemente do que ocorre em incontáveis empresas, ninguém é promovido por reduzir custos, mas, sim, por projetar e desenvolver idéias inovadoras, ainda que dispendiosas. A caixa de plástico transparente do primeiro iMac, cujo desenho jetsoniano tirou a empresa do buraco em 1998, custava US$ 65, enquanto a média de custo no restante da indústria era de US$ 20. À época desse projeto, a Apple oferecia aos seus designers o luxo insuperável de ter a seu serviço um supercomputador Cray X para simulações.

“Nós contratamos pessoas que desejam fazer as melhores coisas do mundo”, costuma vangloriar-se Jobs. Não são, porém, apenas o talento e o entusiasmo de seus engenheiros e designers que explicam a liderança da Apple no campo da inovação. Há um método na criação, que já foi descrito como “colaboração profunda” e “engenharia concomitante”. Esses termos tentam descrever o trabalho simultâneo e interdisciplinar em que vários grupos (hardware, software, design e marketing) se reúnem o tempo todo para medir avanços e trocar sugestões. Esse processo é chamado de co-polinização e foi empregado no desenvolvimento do iPhone. Na palestra de lançamento do novo produto, Jobs pediu aplausos para a equipe que havia criado o aparelho. Várias dezenas de jovens puseram-se de pé para ser ovacionados. Que uma equipe tão numerosa tenha mantido o mais cerrado segredo a respeito do projeto em 30 meses de trabalho é uma bela mostra de lealdade, envolvimento e espírito de equipe – além, provavelmente, do temor que Jobs infunde. O que ali se faz é diferente do que ocorre na maioria das empresas, onde a criação se dá em estágios seqüenciais, isolados entre si: uma equipe conclui sua parte e passa o trabalho para outra, que avança. Segundo afirma Ive, a maneira tradicional de desenvolver produtos simplesmente não funciona quando se é tão ambicioso como o pessoal da Apple. Montes e montes e montes de protótipos são feitos até que as idéias ganhem forma definitiva. Há também detalhes chatos – mas não menos importantes –, como desenhar exaustivamente parafusos que não aparecem. Depois, resta o velho problema dos materiais. Para fazer o primeiro iMac, os projetistas da Apple fizeram estágio em uma fábrica de gelatina, tentando entender questões de cor e transparência. Quando se trata de desenhar em metal, o time é capaz de se deslocar ao norte do Japão para aprender com os especialistas mundiais dessa especialidade. A ousadia do design da Apple é informada pelo robusto conhecimento industrial dos seus desenhistas, não apenas pelo desejo de assombrar. “A gente passa muito tempo nas fábricas”, explicou Ive, tempos atrás. Claro, esse grau de dedicação funciona somente em uma cultura corporativa na qual a perfeição absoluta é considerada um objetivo razoável. E na qual os profissionais podem atirar-se de corpo e alma a poucos projetos de cada vez. O toque final do processo Apple é arrancar o couro dos fornecedores, para que o custo da inovação não seja repassado aos consumidores, inviabilizando a venda das novidades. A empresa é conhecida como a negociadora mais feroz do mercado de tecnologia.

Por dentro da Apple - Parte 4

BIOSFERA TECNOLÓGICA
Há um aspecto pouco mencionado que ajuda a entender a máquina de invenções da Apple. Diz respeito ao ambiente que a circunda. O Vale do Silício começou a atrair empresas de tecnologia como a Hewlett-Packard desde a década de 50 do século passado. Ali reside há décadas um manancial de conhecimento que não é exclusivo de uma ou outra marca, mas do qual todas se alimentam. Os profissionais circulam entre grandes companhias e pequenos empreendimentos tocados por eles mesmos. A cultura de inovação é forte e vem de mãos dadas com uma agressiva cultura de negócios. Não é por outro motivo que empresas como Google, Oracle e Intel nasceram e prosperaram naquela região. O projeto iPod deixa isso claro. Ele começou no final de 1999, e não teria decolado se não fossem as pessoas de fora da Apple. O embrião do programa iTunes foi comprado em junho de 2000 de uma empresa chamada Sound Step, fundada por um ex-funcionário da Apple. Para comandar o desenvolvimento de hardware do projeto, a Apple foi buscar Tony Faddel, um engenheiro freelance que já havia passado por várias empresas do Vale e deixado fama de ser tão incontrolável quanto brilhante. Na Apple ele encontrou um lar. A Faddel juntou-se o pessoal da Portal Player, uma empresa recém-fundada que vinha trabalhando duro para melhorar os primeiros tocadores de música de MP3. Ela possuía não somente o know-how de projetar esse tipo de aparelho como conhecia os fornecedores asiáticos de componentes que poderiam lhe dar forma. O último elemento do time foi acrescentado com a Pixo, dona de um programa capaz de fazer funcionar suavemente o hardware que a Portal Player já vinha projetando. Sem esses forasteiros, a Apple não teria conseguido desenhar o iPod no exíguo prazo de seis meses, e nos padrões de excelência exigidos por Jobs. Assim como as companhias asiáticas se beneficiam da biosfera tecnológica que abriga a melhor fabricação eletrônica do mundo, a Apple bebe de uma fonte profunda de inovação que veio antes dela e a circunda – o Vale do Silício.

Garoto de ouro da mídia: desde que se lançou ao mundo dos negócios, com 21 anos, Steve Jobs já esteve 68 vezes em capas de revistas (69, com essa edição). Os altos e baixos de sua carreira hipnotizam o mundo empresarial

No livro The Perfect Thing (A Coisa Perfeita), de Steve Levy – cujo primeiro capítulo é reproduzido nesta edição – um dos integrantes da equipe de 40 pessoas que criou o iPod dá sua versão de como funciona o processo criativo da Apple. “Nós trabalhávamos muitas horas, mas estávamos no mesmo barco, com muita energia. Era um time incrível e não havia fronteiras. Os caras do software, os caras do hardware, todo mundo junto. Foi uma experiência fascinante”, afirma Jeff Robin. Será esse tipo de experiência replicável? Observadores externos à Apple duvidam. Dizem que o sistema só funciona porque está limitado a um número pequeno de projetos. Os produtos podem ser pajeados em tempo integral, do berço ao balcão, por uma equipe pequena e dedicada de desenvolvedores. Esse modelo não permite crescer e não se ajustaria em corporações como Samsung e Sony, compelidas a inovar em um arco muito mais amplo de produtos. Talvez seja verdade, talvez não. A idéia de concentrar esforços e buscar excelência de forma intransigente parece aplicável a qualquer negócio. Assim como a máxima de Jobs sobre a missão de sua empresa. “Atuamos apenas em áreas onde sentimos que podemos fazer uma grande contribuição”, afirma. “Temos de dizer não a milhares de idéias para não tentar fazer coisas demais.” Se isso denota pouca ambição no empresário menos modesto do mundo, ele arremata: “Não vamos ser os caras mais ricos do cemitério, mas somos os melhores no que fazemos”.

Ouça o podcast Por trás da capa sobre a Apple


Ouça o podcast Por trás da capa, um bate-papo do diretor de redação de Época Negócios, Nelson Blecher, com o editor-executivo Ivan Martins, ao redor do culto do CEO da Apple. Blecher e Martins conversam sobre a figura carismática de Steve Jobs, ouvem e comentam a trilha sonora inspirada nas prefências musicais particulares do empresário. Os dois jornalistas também falam sobre o espírito empreendedor que move empregados e empresas no Vale do Silício. Clique aqui para ouvir.

TWITTER: O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?

Já tem nome a última moda da internet para adolescentes de todas as idades: www.twitter.com

Para quem ainda não conhece, trata-se de um novo e frenético site de relacionamento.

Através dele, as pessoas contam às outras o que estão fazendo, minuto a minuto.

Pode-se acompanhar a evolução do dia ou das horas dos outros por computador ou celular, dependendo da urgência.

Uma das coisas essenciais a respeito do serviço é que ele permite conectar redes de pessoas com um grau inédito de rapidez e intimidade.

A outra coisa essencial é que se trata quase sempre de um exercício em banalidade.

O sujeito desperta na Cidade do México e anuncia ao mundo: “Levantei com fome, mas assim que tiver comido voltarei a dormir.”

Um outro, londrino, revela: “Estou tentando descongelar a minha geladeira”.

Na Califórnia, uma moça com nome indiano queixa-se da chuva...

O serviço foi lançado um ano atrás com o objetivo de servir grupos de pessoas que quisessem atualizar informação pelo celular.

Transbordou, foi desvirtuado, e já tem 80 mil assinantes. Virou hype.

O modelo de negócio permanece um mistério: como se faz dinheiro com uma idéia dessas?

Alguém sabe?

Escrito por Ivan Martins - 26/03/2007